Finalmente chegamos ao Rio Grande do Sul. Já era muito tarde da noite, precisamente 23 horas quando encontramos a primeira placa indicando que estávamos em outro estado. Infelizmente não existe uma placa de divisa, na ausência da mesma registramos uma da Polícia Rodoviária Federal avisando sobre a 9ª Superintendência e a 3ª delegacia pertencente a Torres/RS.
Chegada no Rio Grande do Sul
Mesmo cansado e com frio, pedalar por mais um estado me deixava extremamente contente. Já conhecia o RS desde 2005, na ocasião uma excursão com a faculdade pelas Missões Jesuíticas. Mas de bike era a primeira vez e isso tornava o momento ainda mais especial, uma sensação que aos poucos vou conhecendo o Brasil pedalando, falta muita coisa pra ver com os próprios olhos, certamente não passarei em todos os lugares, mas a impressão que tenho é de estar no caminho em que eu acredito, vivendo como gostaria de viver. Apenas em 2010 foram 6 estados percorridos de bike. RS, SC, PR, SP, RJ e MG. Aproveitando as oportunidades e adquirindo conhecimento, curtindo a natureza e valorizando a vida.
Pedalamos mais um trecho após a placa e o Marco parou para realizar um telefonema. Alguns postos de combustíveis pelo caminho, ficava prestando atenção se algum era propício para montar acampamento. Os bairros ao redor e afastados do centro não pareciam muito seguros o que exigiu que buscássemos outro lugar. Avançando, chegamos no trevo para o centro de Torres, entramos e seguimos até encontrar algum local onde fosse possível passar a noite.
Ao aparecer algumas residências, surge também um posto fechado com um lava-jato coberto, sem um guarda presente, peço permissão a um senhor que estava conversando no portão de uma casa aos fundos do estabelecimento. De forma grosseira nos avisou que não era dono do posto e que a ronda (polícia) poderia aparecer a qualquer momento e criar problemas. Sacando logo de cara que ele não estava a fim que ficássemos por perto, agradeci e perguntei sobre a existência de um camping. Pra nossa surpresa tinha um a menos de 50 metros.
Seguimos para o camping. Aparantemente abandonado, claro, temos que considerar o horário, já era quase meia noite. Mesmo assim na entrada do local não havia funcionário algum, adentramos e fizemos uma vistoria no local, identificamos banheiros e outras coisas típicas de camping. Observando melhor, achamos uma barraca montada, mas nada de funcionário. Marco bate palmas e ninguém aparece. Faço a sugestão de encostarmos em um canto coberto ao lado de uma pia e assim não precisar montar a barraca, usar apenas o saco de dormir. Marco aceita mas fica preocupado na possível chegada de alguém. Mas o máximo que poderia acontecer era um questionamento sobre a nossa presença que facilmente seria explicada com a justificativa de que não encontramos ninguém. Simples.
Já estávamos quase dormindo quando aparece uma mulher perto do banheiro, talvez tenha nos visto, não sei, todavia, não nos procurou. Logo em seguida surge um veículo e o rapaz entra no mesmo lugar do que a mulher. Apagam-se as últimas luzes que iluminavam o local. Tentamos dormir. Marco capotou em seu saco de domir. Assim como em todas as noites passadas acampando (incluindo viagens anteriores), tenho o sono muito leve e acordo com qualquer barulho. Não demorou muito pra que fosse despertado, duas horas da madrugada e avisto alguém em pé na calçada, próximo da entrada do camping. Acho tudo muito estranho, seria um funcionário? Alguém de olho nas bicicletas? Porque estaria nos vigiando? Fico esperto ao extremo, nada acontece e tenho apenas um cochilo e outro durante a madrugada fria do RS.
O despertador toca, não era nem 6 horas, mas foi o horário combinado com o Marco. Tínhamos que sair cedo pra que ninguém percebesse nossa presença. Seria sacanagem alguém querer cobrar nossa estadia relâmpago e com exceção do espaço, não tiramos proveito de mais nada disponível. Enfim, passava pouco mais das 6 horas e tudo estava devidamente pronto para nossa saída. Não aparece ninguém. Ao lado da entrada do camping tinha uma loja com cobertura e um catador de material reciclado com seu carrinho que havia passado a noite ali, era ele a pessoa que vi de madrugada. Cumprimentamos e partimos em direção à praia.
Torres talvez seja a cidade com as praias mais conhecidas do RS, era um lugar imperdível de conhecer e o tempo era bom, presenciamos um fantástico nascer do sol e nos direcionamos ao mar, cerca de uns 3 ou 4 km do camping. Chegamos ao centro, Marco finalmente achou a joelheira na farmácia e eu aproveitei pra passar no banco e verificar se um dinheiro havia sido creditado na minha conta. Felizmente sim e poderia seguir a viagem tranquilo.
Nascer do sol em Torres
Fomos finalmente ver o mar. Chegamos na Prainha ou Praia do Meio, de onde avista-se o majestoso Morro do Farol. Realmente um maravilhoso lugar que muito me agradou. As cores intensas eram destaques na grama que buscava espaço na areia da praia e do céu azul com algumas nuvens, o verde era mais verde sob as rochas que eram beijadas pelas espumas do mar, este, por sua vez, imenso e calmo com pequenas ondas na presença de pássaros, crustáceos e humanos que completavam e refletiam diante o cenário de uma das mais bonitas praias que visitamos durante toda a viagem.
Torres/RS
Pássaros
Humano em reflexão
Marisco
Crustáceos
Entre uma foto e outra, telefonei para meu pai parabenizando-o pelo seu aniversário e mandando notícias de onde estava. Logo depois seguimos para a praia da Cal, no caminho passamos na base do Morro do Farol onde existe uma gruta de Nossa Senhora Aparecida. Ficamos um bom tempo apreciando a natureza e retornamos ao lado da Lagoa do Violão, casas luxuosas ocupam a área residencial entre a praia e a lagoa.
Na base do Morro do Farol
Marco nota o pneu ficando vazio, sem perder tempo resolve parar numa bicicletaria e colocar uma câmara de ar nova. Mais alguns arames dos pneus de caminhões são retirados. Na oficina o pessoal nos aconselha seguir pela RS 389, conhecida como Estrada do Mar, ao invés de ir pela BR 101 que além de estar em obras tem mais subidas. Como estávamos viajando com um roteiro aberto, decidimos seguir margeando o Oceano Atlântico.
A Estrada do Mar foi construída justamente com a
"intenção de desafogar o trânsito da BR 101 entre Osório e Torres. Nesta rodovia só é permitido trafegar carros de passeio, com a clara intenção de incentivar o turismo e diminuir acidentes. Ônibus e caminhões transitam pela BR-101." A informação do
Wikipédia é legítima, verificamos pouco fluxo de veículos, acostamento em perfeitas condições confunde-se com a pista, pois sua demarcação é feita com uma faixa quase apagada, mas a largura da rodovia evita qualquer situação mais perigosa. O relevo é praticamente plano em sua totalidade. Apesar do nome da rodovia, não se avista o mar, contudo, as cidades litorâneas estão próximas, cerca de dez quilômetros da pista principal.
Claro que seria muito agradável conferir cada praia de perto mas nosso tempo era curto e tínhamos um objetivo, chegar no Uruguay. Em uma viagem de bicicleta, mesmo com uma disponibilidade maior para conhecer os lugares, alguma coisa sempre fica para uma próxima vez. Faz parte, como tudo na vida, para ter determinadas coisas é necessário renunciar a outras. Seguimos.
Uma fauna e flora riquíssimas começa a fazer parte do caminho de modo impressionante, sobretudo, uma diversidade imensa de pássaros, como nunca vista antes em uma viagem de bicicleta realizada por mim. Acredito que a presença de vários animais se justifica pelo ambiente rodeado de lagoas, campos arborizados e a proximidade com o litoral.
Papa-arroz (Leistes superciliaris)
Essa é a natureza, sempre surpreendendo.
No caminho fomos abordados por dois ciclistas em suas speed, eram de Caxias do Sul, tratava-se de Daerton Labatut e Erico. O primeiro competidor há mais de quarenta anos. Hoje participa da categoria master do Campeonato Brasileiro de Ciclismo, fato que me fez questionar se conhecia o
Paul Lirio Berwin de Marechal Cândido Rondon/PR, um amigo de pedaladas nas trilhas de Rondon. Labatut não só conhecia o Lirio como também outros ciclistas de Foz do Iguaçu, como o Toninho e seu pai, sr. Azor. Pra completar a idéia de que o mundo (pelo menos o do ciclismo nacional) é pequeno, ambos já pedalaram com um outro amigo cicloturista, o Jair (peixe), participante de vários Audax.
Conversamos por alguns quilômetros, registramos o encontro, nos despedimos e eles seguiram pela Rota do Sol até Caxias, estavam aproveitando uma visita à Torres para treinar, em sua companhia estava um carro de apoio. Vale uma observação em relação as bicicletas importadas deles, (Fuji e Pinarello) cada uma custando bem mais de 10 mil reais, é brincadeira? Cada um investe como pode. O simpático Labatut ainda fez um pedido, assim que estívessemos na Av. Itália em Montevideo, tirássemos uma foto do globo que seria de fácil identificação. Segundo ele, estivera neste local anos atrás.
Eu, Marco, Labatut e Erico.
Marco e eu, continuamos pedalando pelo Litoral Norte Gaúcho. Na região de Xangri-Lá, verificamos o contraste social, existente também em várias localidades do Brasil, infelizmente. Um fato curioso foi perceber que a rodovia separava dois extremos, o lado rico e suas luxosas mansões e o lado pobre com seus barracos sem a mínima infra-estrutura de uma habitação. Além disso, como bem observou o Marco, até a natureza dos lugares parecia diferente, incrível. Em determinadas áreas não precisava da pista para demonstrar tal contraste.
Contrastes pelo caminho.
Almoçamos nas proximidades da Atlântida Sul, um local para burguês comer, o que não era nosso caso. Mas com fome, não resistimos e pedimos o prato mais barato do menu (não era buffet). Lógico que veio pouca comida, frescura de gente rica. Só paramos no local porque já passava das 3 horas da tarde e parecia que não acharíamos outro estabelecimento aberto na região. E detalhe, não jantamos no dia anterior e o café da manhã foi apenas dois salgados na saída de Torres.
Marco. Detalhe na porção 'imensa' do arroz.
Não demoramos muito e caimos na estrada sentido Capivari do Sul, a preferência pra chegar na cidade foi via Osório e não Tramandaí e Cidreira, o motivo muito simples, a distância menor. Lembrando que decidimos por tal caminho na hora, logo depois do almoço. O Marco havia feito no começo do ano a viagem de Itanhaém/SP ao Chuy no Uruguay, salvo alguns trechos, o caminho era 80% o mesmo. Contudo, Osório era novidade pra ele, uma vez, que na outra ocasião seguiu por Cidreira.
A decisão por passar em Osório não poderia ter sido melhor, pra começar encontramos pelo caminho uma árvore de pássaros, algo de uma peculariadade inacreditável. Sem as folhas por causa da estação, a presença das aves amarelas, parecidas com Canário da terra transformou a paisagem em um momento inesquecível.
Árvore de pássaros.
As surpresas não acabaram e logo começamos a enxergar grandes 'moinhos de vento' no horizonte. Na verdade era o Parque Eólico de Osório, a maior usina eólica da América Latina, composta por 75 torres de aerogeradores de 98 metros de altura e 810 toneladas de peso cada uma. Com certeza mudando a paisagem da área campestre. Foi a primeira vez que tive a grande oportunidade de conhecer uma usina deste tipo. No Paraná sei que tem em Palmas, contudo, ainda não visitei a cidade. Por isso, estar diante de tamanha engenharia foi mais uma experiência memorável. Pra completar, o pôr-do-sol entre as enormes torres.
Parque Eólico de Osório
Maior usina eólica da América Latina
Torres e aerogeradores enormes para transformar a energia eólica em elétrica.
O vento começou a ficar forte e o tempo fechado, sinal que mais cedo ou tarde a chuva voltaria. Após o Parque Eólico, pegamos um trecho pequeno na BR 290 antes de ingressar na BR 101/RS101. Assim que você avistar muita água ao seu lado direito é sinal que você está diante da
Lagoa dos Barros, se você é supersticioso, atente para as lendas do local, sinistro.
Essa parte da 101 se apresentou como uma das mais belas de toda a Expedição de Inverno. Foram inúmeras espécies de pássaros encontradas durante os quilômetros até a cidade de São José do Norte. Uma fauna extremamente rica. Mas isso, nós presenciamos apenas no dia seguinte, pois depois de Osório a noite chegou e ouvimos apenas o som dos animais por todos os lados. O acostamento é quase inexistente, muito estreito, contudo, percebe-se que na medida que você avança diminui o tráfego de veículos e fica muito fácil pedalar por essas bandas.
A pretensão depois de Osório era chegar em Capivari do Sul e assim ficar devendo 'apenas' 80 km considerando o roteiro alternativo traçado em Biguaçu/SC. Seguimos e a chuva apareceu antes do que imaginávamos. Coube decidir, seguir na chuva ou parar na próxima cidade. A resposta foi rápida, parar no próximo lugar habitado, que por sua vez era Passinhos, um pequeno distrito de Osório. Entramos e logo perguntamos sobre a existência de alguma pousada ou hotel, embora, não estivesse esperançoso de que a resposta fosse positiva. Um jovem nos aconselhou o ginásio que seria aberto em poucos minutos para uma partida de futsal, teríamos que conversar com o responsável do local.
A fome já estava sinalizando que era hora de comer, então resolvemos procurar um mercado para completar nosso estoque de bolacha e macarrão instantâneo. Encontramos um mercado modesto e que tinha cobertura em sua entrada. Marco perguntou ao dono se haveria problema em passarmos a noite no local. Somos autorizados sem antes a mulher dele nos contar um causo de que certa vez um ladrão ou rebelde como foi mencionado, tentou invadir a casa deles nos fundos, sem saber do alarme acabou surpreendido e fugiu, minutos depois praticamente todo o povoado estava com armas, facões e coisas do gênero na frente do mercado para pegar o ladrão forasteiro. Se a história é verídica eu não sei, mas pareceu que ela estava tentando nos dar um aviso caso nossa intenção não fosse das melhores.
Enquanto nos preparávamos pra tirar as coisas da bicicleta aparece um homem e começa a conversar, era o Sr. Darci, pai da mulher que nos contara o causo. Ao saber que pretendíamos passar a noite ali nos ofereceu gentilmente a garagem de sua casa, totalmente coberta e protegida, sobretudo, da chuva e frio. Sua esposa, dona Lourdes a princípio hesitou um pouco mas logo embarcou na idéia de nos ceder o espaço. Maravilha.
A garagem era simples, além de guardar o carro, Sr. Darci utilizava como um deposito para seus equipamentos de montagem a cavalo, entre outras coisas. Ficamos muito satisfeitos com a sorte e a hospitalidade daquelas pessoas. Já chovia forte quando a comida estava sendo preparada. Claro que ficamos sem tomar banho, o Marco ainda se dispôs a passar uma água rápida com a mangueira que estava do lado de fora. Cansado, com fome e fazendo aquele frio, não pensei duas vezes em deixar o banho pro dia seguinte.
Garagem, nosso quarto.
Marco depois de um banho gelado de caquinha no quintal.
Capotado.
Choveu bastante a noite inteira. Na manhã seguinte, acordamos cedo e logo arrumamos as coisas e ficamos prontos pra partir. Antes, agradecemos a hospitalidade do simpático casal e tiramos uma foto com eles. Dona Lourdes ainda comenta sobre o tempo e nos surpreende com a notícia que um tornado atingira Canela, na serra gaúcha, o local fazia parte do nosso antigo roteiro. Fiquei atônito ao saber da tragédia e pensei sobre isso o resto do dia. Ainda bem que mudamos o itinerário.
O casal que nos cedeu espaço para passarmos a noite.
Sem chuva partimos com aproximadamente 100 km (ou meio dia) de atraso ao nosso roteiro alternativo, objetivo do dia era seguir o máximo possível para diminuir esse prejuízo. Mas a missão foi difícil, isso porque era inevitável não parar, contemplar e registrar a natureza que se apresentava cada vez mais bela e rica em sua diversidade. Também presenciamos nos primeiros quilômetros alguns animais mortos na estrada, como tatu, codorna e uma pequena cobra, indícios da invasão humana sem consciência ao espaço natural da fauna regional.
Tatu atropelado.
Esse era um dia especial, 22 de julho, aniversário do camarada Marco, acredito que tenha sido um grande presente passar essa data pedalando. Recebeu vários telefonemas, principalmente na parte da manhã, significando uma parada aqui, outra acolá enquanto apreciava as belezas naturais, paisagens maravilhosas. Mesmo atrasados, ambos não tinham pressa e não mostravam-se preocupados com tal situação, afinal, o importante era avançar e isso estava sendo feito.
Marco recebendo os parabéns pelo seu aniversário.
A natureza nos presenteava a cada quilômetro com uma espécie diferente de pássaro, desde Cardeais, Canários, Gaviões, Papa-arroz (Leistes superciliaris), Pica Pau de Papo Amerlo, até aves não identificadas mas com uma beleza ímpar. Uma diversidade assim eu não cheguei a ver nem mesmo na Estrada Real em Minas Gerais, onde pedalei cerca de 700 km pela área rural do estado, também muito rica em sua fauna e flora..
Buteogallus meridionalis. Gavião-caboclo.
Carão
Cardeal
Papa-arroz
Não identificado
Resumindo a diversidade e beleza do ambiente.
A estrada como já foi dito não apresentava nenhum problema, pelo menos até Capivari do Sul. Depois buracos e mais buracos fazendo todos, inclusive a gente, desviarem em alguns trechos das crateras no asfalto, isso exigiu mais atenção pra evitar ser pêgo de surpresa por algum motorista distraído. Assim foi até Mostardas onde decidimos parar pra descansar, pousada foi a solução. Mas antes vale contar dois fatos no mínimo curiosos. O primeiro referente a uma placa não muito comum na estrada; SOLIDÂO, referente ao distrito de Mostardas, claro que não deixamos de brincar com a situação e fazer algumas
performances diante de tal ocorrência. Mereceu a lembrança da célebre frase do Renato Russo; "O mal do século é a solidão." Como será que vivem as pessoas deste lugar? Melhor não incomodá-las!
"O mal do século é a Solidão"
Segundo fato, pra chegar em Mostardas não foi fácil. Não porque estava frio, aliás muito frio, é bom deixar registrado. Não estava chovendo, mas tinha um clima nebuloso no ar, notamos que um carro estava muito devagar na nossa frente, cerca de uns 700, talvez 900 metros. Isso durante vários minutos, avisei o Marco e ficamos espertos. Era uma região deserta, estava de noite e todo cuidado era pouco. Resolvemos apagar os faróis na intenção de despistar o motorista e passamos a pedalar mais devagar a fim de não ultrapassá-lo e deixar que sumice do nosso campo de visão. Foi um momento de certa tensão até o momento que não era mais possível vê-lo. Na verdade ficamos tranquilos mesmo só quando estávamos hospedados na pousada. Pois antes de Mostardas a atenção foi redobrada e cada canto era observado para evitar um ataque surpresa. A lua foi nossa aliada, ilimunando o asfalto, não necessitando do farol.
O que teria acontecido? A pista repleta de buracos teria causado algum dano ao veículo ou estava mesmo mal intencionado? Nunca saberemos a resposta, ainda bem. Assim salvaram-se todos. Em relação à condição da pista, de tarde um caminhão sem poder desviar completamente dos buracos, pois do outro lado da pista havia dois ciclista (a gente), acabou estourando um dos pneus que mais uma vez na viagem nos deu um baita susto.
Com o episódio do carro fica um alerta aos amigos cicloturistas, sempre fique atento a qualquer comportamente suspeito. É quase inevitável nas paradas dizer de onde vem e pra onde vai, mas hesite antes de uma resposta imediata e verifique se ao redor não há pessoas aparentemente má intencionadas, sei que julgar alguém pela aparência é injusto e complicado, mas nos dias de hoje é bom tomar cuidado, sobretudo, se você está pedalando sozinho.
Começamos o último dia na BR 101, talvez o mais tranquilo de toda a viagem. E sem brincadeira, era possível contar quantos carros passaram por nós durante as horas em que estivemos na estrada, mas eu pelo menos não fiquei concentrado neste detalhe e fui apreciando as paisagens. As margens da rodovia estavam quase todas alagadas em razão da chuvas, comuns nesta época do ano na região, conforme nos falaram os próprios moradores do local. Em algumas áreas habitadas a água quase invade as casas à beira da estrada. E não é absurdo dizer que vários hectares ficam inutilizados, pelo menos aos seus proprietários, pois a fauna e flora agradecem o ambiente, acredito eu, após verificar tanta vida pelo caminho.
Após Mostardas a estrada melhora muito em comparação ao trecho do dia anterior. O sol aparece mas não esquenta muito, talvez por causa do forte vento que por sua vez, estava contra. Não rendemos muito e o desgaste foi ainda maior. Marco estava sentindo dores nos tendões, segundo ele, a sapatilha nova utilizada por vários dias consecutivos (pela primeira vez) proporcionou o inchaço do calcanhar. Mas não foi isso que desanimou ou desencorajou e fez o camarada desistir, bravamente resistiu até o fim. Sou testemunha de seu esforço para vencer essa barreira. Sem poder fazer muita coisa, me restou um apoio moral e compreender que seu ritmo não seria o mesmo. E sinceramente, em nenhum momento pedalar em seu ritmo ou esperar sua aproximação foi motivo para ficar bravo ou coisa parecida.
O trecho até Tavares era tão tranquilo que resolvemos tirar umas fotos diferentes, deixando a câmera no meio da pista, mas não é qualquer pista, é a BR 101, fato que merece toda atenção por ser uma das rodovias mais conhecidas do país, principalmente por sua extensão interligando vários estados e dezenas de cidades. Foram algumas tentativas com a função automática da máquina até conseguir um clique legal.
De um ângulo diferente na BR 101.
Como a saída da Pousada Parque em Mostardas foi um pouco tardia, pois não é fácil acordar cedo no frio, especialmente depois de vários dias na estrada, pedalando. Mas a demora também foi justificada pelo café da manhã, servido a partir das 7 horas da manhã e que não poderíamos deixar de degustar.
Na estrada, logo estávamos no Parque Nacional
Lagoa do Peixe, ambiente que é "é abrigo para grandes concentrações de aves migratórias", incluindo o Flamingo, não avistamos o mesmo, exceto em uma escultura na entrada da cidade de Tavares. Outras aves se incubiram de deixar o cenário bonito.
Pica pau do papo amarelo
Não identificado.
De Tavares até Bojuru não existe praticamente nada, um ou dois pequenos povoados (mas pequenos mesmo) sem nenhuma estrutura para alguém que está viajando, como restaurante por exemplo. Portanto, se você vai se aventurar por esta região, prepara-se para fazer sua própria comida ou comer alguma coisa pra enganar o estômago, assim como fizemos. Mas antes acabamos de tirar as fotos no meio da estrada que começamos quilômetros atrás. Não é imprudência da nossa parte se atrever desse modo, o local realmente é muito pouco frequentado, ao menos quando passamos por lá. A cada meia hora passava um carro e outro. Assim, conseguimos fotos ainda melhores.
BR 101, a infinita highway
No acostamento estreito paramos pra comer algumas bolachas acompanhado da sobra de um refrigerante comprado no dia anterior. Tudo muito simples. Com a calmaria, Marco ficou sentado na pista, sim, na BR 101 e brindamos ao nosso estilo de vida. E assim foi nosso almoço diante de uma rodovia quase deserta meio a extensos campos abertos com algumas partes alagadas e horizontes em que era possível observar as lagoas e lagunas da região.
Almoço no acostamento da BR 101. Um brinde ao nosso estilo de vida.
Áreas alagadas.
O tempo estava bom no que diz respeito a não estar chovendo. O sol brilhava forte em um céu sem nuvens, mas no inverno isso não implica necessariamente que a temperatura estivesse moderada, com vento o frio tornava-se intenso fazendo com que ficássemos pouco tempo parados. A tranquilidade e beleza do lugar não deixaram que o vento contra nos desanimasse.
Na pequena Bojuru fomos procurar um mercado para nossas provisões, sobretudo, de comida. Era final de tarde e regressando à estrada o espetáculo do pôr-do-sol era mais um fato diante de um dia inesquecível. Contudo, o crepúsculo não era sinônimo de que o pedal estava encerrado. Na verdade teríamos mais quatro horas na estrada.
Pôr-do-sol
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E sem o Sol fica ainda mais frio. |
De tarde, o céu sem nuvens já indicava que a tendência seria ficar cada vez mais frio a partir do momento em que o sol se escondesse. E o resultando não foi outro, na minha opinião a noite mais fria de toda a viagem, incluindo os dias posteriores no Uruguay onde o inverno se fez presente rigorosamente.
O silêncio predonominava no longo caminho para São José do Norte, inclusive, conversávamos pouco, o cansaço era aparente, ambos sentíamos a temperatura baixa e as reações não poderiam ser diferentes, cada um seguiu pedalando pra manter-se aquecido, o momento era de concentração no intuito de não deixar o cansaço nos abater. O ambiente não era dos mais agradáveis a essa altura, frio, lugares isolados e pouco habitados. Acredito que a temperatura estivesse entre 3 a 5 graus Celsius, contudo, a sensação térmica era muito menor, meus pés e mãos praticamente congelaram, fato que me fez lembrar um episódio parecido na viagem para o Chile quando a 4 mil metros de altitude na Cordilheira dos Andes, os dedos das minhas mãos pareciam que iriam se despedaçar a qualquer momento.
O camarada Marco sentia o frio praticamente do mesmo modo. Em determinado ponto parei para colocar minha touca estilo ninja, toda fechada com abertura apenas nos olhos e boca, tudo a fim de evitar a perda de temperatura. Marco continuava a sentir as dores nos tendões e como de costume parava para fazer breves alongamentos. Em um desses momentos avisei que parar com aquelas condições seria pior do que continuar sem alongar. Seguimos.
Frio intenso, foi necessário usar a touca ninja.
Mesmo com poucas conversas e um clima tenso no ar, as risadas aconteceram. Nas proximidades de Estreito, com as luzes das bicicletas apagadas para economizar pilha aproveitando a luminosidade refletida pela lua, tivemos uma situação engraçada. No pequeno vilarejo às margens da rodovia um grupo de garotas se preparava para atravessar a pista quando nos avistaram e consequentemente se assustaram com a nossa presença do além. Logo depois, todos nós caimos na risada, cumprimentamos e avançamos comentando o fato.
Naquela hora da noite (21:00) e com o frio que fazia, encontrar aquelas moças no meio da pista era algo realmente curioso, elas possivelmente deveriam ter saído de algum culto religioso e então ficamos imaginando a impressão delas ao nos ver. Será que fomos comparados em um primeiro instante à maleficências citadas nas sagradas escrituras? Não sei. Mas foi engraçado e nos rendeu boas risadas depois.
A essa altura, faltava uns 40 km para chegarmos em São José do Norte, sem cogitarmos a idéia de parar em outro lugar seguimos determinados a superar essa distância apesar de todas as adversidades. E assim, por volta das 11 horas da noite chegamos na cidade com suas ruas de pedras irregulares com ambiente portuário e uma imagem que não nos agradava, uma vez que estava escuro e na região do cais algumas pessoas estavam nas sombrias vias. Um carro aborda o Marco, era o Cesar, conhecido na cidade como Marreca, segundo ele estava andando nas ruas na tentativa de fazer sua filha (um bebê) dormir. Ainda nos direcionou até o local onde se encontrava a balsa por onde atravessaríamos para a cidade de Rio Grande. Questionado sobre o melhor local para passarmos a noite, S. J. do Norte ou Rio Grande, Cesar acaba nos mostrando um hotel próximo do cais.
Antes de nos despedirmos de Marreca, ouvimos suas histórias de que também havia praticado cicloturismo muito tempo atrás, realizando até uma viagem para o Rio de Janeiro. Talvez por isso de sua atenção e admiração. Agradecemos pelas dicas e fomos direto para o Hotel Caçulão, indicado por Marreca. Decidimos ficar em São José do Norte principalmente para poder atravessar a Lagoa dos Patos de manhã e assim curtir o visual.
No hotel simples, temos uma boa notícia, a diária do quarto mais barato é a menor encontrada até o momento, sem hesitar, aceitamos e pagamos 15 reais cada um, sem café da manhã, infelizmente. Também não tinha banheiro no quarto, mas pra ser sincero eu não me importei com isso, estava com tanto frio que minha vontade era preparar a comida e dormir aquecido o quanto antes, o banho poderia ficar pra depois. Marco acabou encarando o banheiro comunitário que pelo menos tinha água quente.
Descanso merecido.
Nosso vizinho de quarto era um tanto extravagante para não dizer outra coisa. Marcelo o recepcionista do hotel nos alertou sobre seus hábitos excêntricos, ele simplesmente conversava com a televisão. Entendo que muitos já tiveram esse tipo de atitude, mas e se eu dissesse que o diálogo durou a noite toda? Sim, fomos dormir com ele assistindo o programa Separação da rede Globo e cantando de um jeito muito engraçado a música;
Pode vir quente que eu estou fervendo, e acordamos com ele discutindo com o aparelho. A sorte foi que eu particularmente estava cansado e não fui prejudicado com a sonoridade ao lado. Talvez tudo isso explicasse o valor baixo da diária.
Na manhã seguinte descemos as escadas que exigiram esforço no dia anterior para levar as bicicletas até o quarto. Aproveitamos e no restaurante do hotel tomamos o café da manhã, pão francês e leite. Depois nos dirigimos para a balsa que estava de saída, o que provocou uma correria em comprar o bilhete (4 reais) e para embarcar as bicicletas. Mas deu tudo certo e São José do Norte estava ficando para trás, assim como a BR 101 com suas magníficas paisagens.
A Rota Extremo Sul era nosso próximo destino.