quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Expedição de Inverno 2010 - PR, SC, RS, Uruguay e Argentina

O relato abaixo é de autoria: Nelson Neto

Expedição de Inverno - Parte 1
Buenas camaradas.

Postagem novamente, sinal de que alguma aventura aconteceu. Então vamos ao que interessa.

Após a Expedição Foz, Estrada Real e Belo Horizonte, no começo de 2010, não tinha em mente nenhuma outra viagem, de bicicleta é claro, que não fosse para Machu Picchu, a continuação da trip que terminou em Belo Horizonte/MG. Mas tudo muda o tempo todo. Meus planos para realizar o sonho de conhecer a Bolívia e o Peru antes de julho ficaram adiados em razão do cálculo renal que me deixou dois meses sem poder pedalar ou fazer qualquer outra atividade física, foi uma fase complicada e de muitas dores, contudo, superada completamente. No entanto, isso atrasou minha pretensão de finalizar o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) , última matéria para estar formado no curso de História, logo me concentrei apenas nos estudos. E para voltar ao condicionamento físico anterior aos dois meses parado, retornei aos treinamentos.

No mês de maio em meio a uma conversa informal com o amigo e cicloturista Marco de Itanhaém/SP, surge a possibilidade de alguns dias livres para a realização de uma viagem, ainda sem destino e data exata para acontecer. Amadurecemos a idéia e entramos em contato com outros amigos, sobretudo, da comunidade no orkut (do Atlântico ao Pacífico), para tentarmos conciliar um roteiro viabilizando o encontro com a turma, amigos do pedal de longa data.

Após algumas conversas decidimos seguir o roteiro proposto pelo Aramis no qual consistia em uma saída de Curitiba passando pelo litoral catarinense e posteriormente as serras do estado, entre elas a do Corvo Branco nas proximidades de Urubici e a Serra do Rio do Rastro, região de Bom Jardim da Serra e Lauro Muller. Seguiríamos para o Estado do RS passando pelos canyons em Cambará do Sul e a região serrana de Gramado e Canela. Consequentemente a passagem pela capital Porto Alegre de onde desceríamos em direção ao Chuí, ingressando no Uruguay.

Claro, por motivos óbvios e principalmente por falta de tempo, muitos amigos não poderiam percorrer o roteiro em sua totalidade. Mas deixamos bem claro na comunidade que o importante seria reunir o maior número possível do pessoal, um encontro histórico. Assim, a companhia na estrada, nem que fosse por um dia já seria o suficiente.

A data em comum acordo foi marcada para 17 de julho com saída em Curitiba às cinco horas da manhã no supermercado Wall Mart da Avenida das Torres. Dias antes do encontro, algumas pessoas confirmaram presença. Aramis, Marco, João Paulo, Romulo, Tui, Rodyer, Damasceno (mais dois amigos) e eu. Em comparação ao número de membros na comunidade, ainda eram poucas as pessoas interessadas em participar de alguma forma da viagem. Enfim, fizemos a nossa parte em divulgar e convidar todos. Restava saber quem iria mesmo comparecer na hora da verdade, ou seja, a partida.

Entre a primeira conversa com o Marco e a data da viagem foram aproximadamente dois meses para podermos nos preparar, seja fisicamente, psicologicamente e toda a estrutura necessária na concretização da aventura, itens indispensáveis, sobretudo, em uma expedição de inverno, como roupas especiais, saco de dormir, isolante térmico, cobertor de emergência, barraca, fogareiro, comida, entre outros. Uma bicicleta revisada e ferramentas para qualquer imprevisto. E ainda a questão financeira, a busca de recursos diante das possilidades de cada um.

Eu particularmente treinei bastante assim que fui liberado para atividades fisicas, gradativamente com ritmo e distância maiores. O lado psicológico estava mais voltado para a monografia, mesmo assim, buscava me manter atento aos acontecimentos referentes à viagem. Em relação aos itens citados acima, tive que adquirir pouca coisa, precisei comprar uma camiseta (segunda pele) da Curtlo que me custou cem reais e uma calça de ciclismo. Investimento que valeu cada centavo.

Analisei o roteiro da expedição, em seguida montei uma planilha baseada no projeto do Aramis, fiz uma modificação, estendendo até Montevideo no Uruguai, onde a priori iria sozinho, uma vez que o Marco ficaria em Porto Alegre com pouca possibilidade de seguir até o Chuy (Uruguay) e Aramis finalizaria em Punta del Este. Não comentei, mas a pretensão inicial, no meu caso, seria sair de Foz do Iguaçu pedalando até Curitiba, contudo, o tempo precioso para adiantar os estudos me fez ir de ônibus até a capital paranaense.

Todos se encontrariam em Curitiba com exceção do Aramis que partiria de Paranaguá/PR por questões profissionais. Marco e eu ficaríamos na casa do João Paulo Saboia, saindo na madrugada do dia 17 para o Wall Mart.

Comprada a passagem (presente do meu irmão André), embarco em Foz do Iguaçu dia 16 de julho, 7 horas da manhã com a empresa Catarinense, com a bike desmontada e devidamente posta dentro da barraca não me cobraram nenhuma taxa extra pelo embarque da mesma. O dia começa chuvoso e com muito frio e assim continua quando chego de noite na capital. João aparece de carro junto com o Marco que estava na cidade há poucas horas e partimos da rodoviária até sua casa.

Acostumado a hospedar ciclistas, nossa recepção não poderia ter sido melhor, um rodizio de pizza feito pelo próprio Saboia, estava ótimo. Conversa agradável na companhia do João Paulo, Bruno, Marco e a Juliana. Jantamos e fomos dormir para acordar de madrugada.


Curitiba/PR. O dia anterior. Casa do João Paulo, jantar com direito a rodízio de pizza e muita conversa. OBS: Jornal com o João na capa, matéria sobre a viagem de bike pra Ushuaia. Na foto: Bruno, Marco, João Paulo, eu e a Juliana

Em razão do tempo, muito frio e com indícios de mais chuva, João resolve não nos acompanhar. Da mesma forma recebemos a notícia do Damasceno, seus amigos e também do Rodyer. Estávamos desacreditados que alguém realmente estaria presente para o nosso encontro histórico. Acordo às 4 da madrugada para sair, Marco demora um pouco mais pra levantar. Quase 5 horas e ainda não saimos, é quando meu celular toca, é o Romulo comunicando que já estava no local combinado juntamente com o Tui. Beleza, alguém apareceu. Marco levanta rápido com o telefonema e começa arrumar suas coisas. Nos despedimos do João Paulo que nos explicou o caminho até o supermercado e começamos a jornada, com ela também a chuva que nos acompanharia por muito tempo.

O começo: Frio, chuva e desistências

Expedição de Inverno - Parte 2
A sensação antes de partir é geralmente a mesma, muita ansiedade até o exato momento de movimentar-se no asfalto. Isso aconteceu logo depois da despedida do companheiro João Paulo que infelizmente não seguiu conosco. Assim, fizemos os últimos ajustes no alforje na intenção de deixá-lo equilibrado e então registramos a saída com uma fotografia na frente do prédio onde mora o João em Curitiba.

17/07 - Saindo de Curitiba (casa João) em direção à BR 376. Começamos bem, chuva e frio intenso.
O encontro com o pessoal que confirmou presença estava marcado no Wall Mart que fica uns quatro, cinco quilômetros de onde estávamos, aliás, atrasados. No caminho, mais uma vez recebo o telefonema do Romulo dizendo que estava em um lugar coberto ao lado do posto. Essa informação demonstra a situação do tempo. O frio já era intenso desde o dia anterior em todo o estado, na capital a sensação térmica era ainda menor. Saimos bem agasalhados, até então era apenas a questão da temperatura, mas não demorou cem metros dos primeiros giros no pedal e o indício de chuva começa aparecer e a ficar cada vez mais evidente de que não seria apenas uma pancada.

Com a chuva, paramos menos de 1 km depois da partida e colocamos a capa no alforje, esta, foi uma idéia do Marco que mandou fazer a partir de uma barraca sem uso. Com ajuda de um conhecido em Itanhaém/SP utilizou a parte de cima barraca pra fazer a sua capa e a debaixo, a minha. Cada uma saiu por trinta reias e ficou muito parecida com aquelas toucas de tomar banho, afinal, o alforje POC tem além das partes laterais, uma superior. A intenção era impermeabilizar o alforje, embora, todas as coisas em seu interior estivessem protegidas com sacolas de plástico, essas de supermercado. No caso do Marco, com saco estanque, que mais tarde se mostraram muito eficientes.

Com as capas devidamente colocadas seguimos para a Avenida das Torres e pouco depois encontramos com o Romulo e o Tui, chegamos uma hora depois do combinado, já era 06:00, acho que eles não gostaram de esperar diante da situação climática, mas tudo bem. Conversamos um pouco antes de seguir viagem. Romulo eu já conhecia da época da Expedição CuritiBahia, Tui no entanto, conhecia muito pouco, de algumas postagens na comunidade.

Depois de encontrar o pessoal, já com chuva forte, seguimos em direção à BR 376 sentido Santa Catarina. Não demorou muito e o pneu do Tui fura nas proximidades do Aeroporto Afonso Pena, trocar pneu com aquelas condições não é fácil. Nos dirigimos até um posto de combustível no outro lado da avenida e trocamos a câmara furada, um pedaço de arame, aqueles de pneu de caminhão havia ultrapassado até mesmo a fita anti-furo. Cerca de vinte minutos depois, voltamos a pedalar. Antes descobrimos que Romulo iria até Porto Alegre e o Tuí nos acompanharia até o Uruguai.

Deixamos Curitiba e a Avenida das Torres para trás e chegamos na BR 376, rodovia extremamente movimentada, trânsito que começou a ficar maior a partir das 07:30. Mesmo com acostamento, pedalar sob essas circunstâncias não me agrada, gerando sempre uma pequena tensão, mas faz parte da vida do cicloturista. A chuva não dá trégua e os caminhões que passam ao nosso lado deixam um enorme spray que acabam direto na cara.

Vamos seguindo, cada um no seu ritmo, mas a princípio todos pedalavam próximos, fazendo uma espécie de rodízio. Marco era sem dúvida o que estava com a bicicleta mais carregada. Havia comentado dias antes que nas subidas de serra iria seguir em um ritmo mais tranquilo. Esse fator (peso) já se fez presente nas subidas da 376. Assim, começamos a pedalar dois mais à frente e dois atrás, nunca deixando ninguém sozinho e mantendo a visibilidade de todo o grupo. Enquanto isso, outro pneu furado, era a vez do Romulo. Aproveitei para comer uns biscoitos made in Paraguay, literalmente. Estava sem comer nada desde a janta na casa do Saboia.

Marco na BR 376, frio, chuva e a bicicleta carregada.

Romulo trocando o pneu furado.

 
Estava muito frio e a chuva não ajudava muito, mas isso não atrapalhava, afinal era o primeiro dia de viagem e eu pelo menos estava animado, não me importava com tal estado. Tiramos pouquíssimas fotos até a divisa PR/SC com a câmera fotográfica à prova d'água do Marco. Falando em divisa, entre subidas e descidas, chegamos em Santa Catarina pouco depois de uma descida alucinante de serra. Claro, registramos a placa indicando a divisa de estado e seguimos para Garuva onde acabamos almoçando. Lembrando, sempre com muita chuva, que não parou por um minuto.

Divisa Paraná/Santa Catarina

Após o almoço em Garuva/SC. Tui, Nelson, Marco e Romulo
Depois do almoço, ocorreu algo diferente. Estamos acostumados a pedalar em grupo, logo, sabemos que cada um tem seu ritmo, contudo, sempre que avançamos muito, paramos e esperamos até reunir todos novamente. Romulo e Tuí seguiram juntos na frente, no entanto, não nos encontramos mais, não se preocuparam em nos esperar, no mínimo, pra saber se estava tudo bem conosco. Paciência!

Após Garuva começamos a pedalar na BR 101, a Infinita Highway, como diz a letra dos Engenheiros do Hawaii. Um acostamento bom, com subidas e descidas normais. O trânsito continuava intenso, sobretudo, de caminhões nos dois sentidos, pista duplicada, diga-se de passagem. Sem poder apreciar muito a natureza em razão do clima, vamos seguindo sob muita chuva. A noite cai e com ela surge o meu primeiro e único pneu furado durante a Expedição de Inverno. Não estávamos longe de Barra Velha, nosso destino no dia e a sorte foi furar o pneu próximo a um viaduto onde troquei, na ajuda do Marco, a câmara furada, também neste caso, um pedaço de arame foi o responsável por tal façanha. Aproveitei que tinha uma fita anti-furo e coloquei. Fato curioso, em todos os casos do dia, o furo foi justamente no pneu traseiro.

Seguir debaixo de chuva e frio após esfriar o corpo não é tarefa fácil, mas lá fomos nós. A rodovia continuava tão movimentada que não seria necessário farol para enxergar o acostamento, as luzes dos veículos faziam esse papel. Porém, continuávamos a usar o farol e a lanterna traseira para sermos vistos.

Avançávamos e nada de encontrar o Romulo e Tui, chegando em Barra Velha pedimos informação de onde ficava o Corpo de Bombeiros da cidade, era o ponto de referência para chegarmos a um posto de combustível, local combinado para aguardar o Aramis que havia saído de Paranaguá. Pedalamos mais alguns quilômetros, avistamos e chegamos no posto, jogamos uma água nas bicicletas e alforje que estavam cheios de barro. Os funcionários do local nos indicaram uma borracharia ao lado onde poderíamos passar a noite, era um ótimo lugar, considerando que tinha cobertura e continuava chovendo.

Na borracharia cada um montou sua barraca, preparamos a comida e jantamos antes de dormir. Marco ainda fez um varal pra estender as roupas molhadas. O lugar era aberto e qualquer pessoa que passasse na frente facilmente notaria a nossa presença, mas com aquele tempo, a única pessoa que apareceu foi um motorista perguntando se a borracharia estava funcionando, isso porque a luz do local estava acesa e logo foi apagada para ficar mais discreto.

Borracharia em Barra Velha, primeiro acampamento da viagem.

Enquanto isso, Romulo entra em contato e diz que estão em um hotel na entrada da cidade, explico que vamos ficar na borracharia pelo fato de termos combinado com o Aramis. É quando ele me explica que o Aramis ligou avisando que ficaria em Garuva e nos encontraria no dia seguinte na cidade de Biguaçu. Começa aqui a mudança do roteiro.

Com as condições do tempo nada favoráveis não iríamos mais passar em Bombinhas, destino do segundo dia. Agora a pretensão seria chegar em Biguaçu, até ai sem problema. Durante a manhã o Romulo liga e diz que vai abortar a viagem em razão da previsão do tempo, muita chuva para os próximos dias. Tui fica indeciso, mas acaba desistindo também.

Logo depois de sermos comunicados de tais desistências, Aramis avisa que está na rodoviária de Joinville e também não vai continuar, motivo; problema mecânico, câmbio traseiro destruído, sem chances de conserto e era domingo, ou seja, nenhuma bicicletaria aberta para trocar a peça quebrada. Sugiro que pegue um ônibus pra Florianópolis, a fim de consertar o câmbio e nos esperar em São José. Mas me explica que já não estava animado e iria mesmo retornar. Ótimo, estávamos apenas Marco e eu para seguir viagem. E agora?

Ficamos um pouco chateados com a desistência fácil do pessoal, mas não poderíamos fazer nada para mudar a situação, restou tomarmos uma decisão rápida. Faço uma sugestão e que logo é aceita pelo Marco, seguir para o Uruguay pelo litoral. Isso significava deixar a região serrana de SC e RS para uma outra oportunidade, isso porque não fazia muito sentido subir as serras com chuva, frio e não poder apreciar o visual.

Com isso, todo o roteiro muda, pelo menos até o início da BR 471, Rota Extremo Sul que vai para o Chuí. Dessa forma, decidimos seguir até Biguaçu neste dia e lá resolver para onde seguir, fazendo um novo caminho, calculando distâncias e analisando os lugares que passariamos.

Roteiro Alternativo

Expedição de Inverno - Parte 3

"Quando estamos viajando passamos por diversas situações inusitadas. Costumo dizer que ao sair de casa estou permitindo que o acaso interfira sobre minha vida."
Jonas Santos

As palavras do amigo e também cicloturista Joninhas de São Paulo/SP, fazem todo sentido no que estava acontecendo em nosso segundo dia de viagem. Afinal havíamos depositado uma expectativa muito grande no fato de poder reunir a galera e realizar uma aventura inesquecível para todos, mas as situações inusitadas apareceram. No entanto, Marco e eu talvez estivéssemos um pouco chateados com a desistência fácil dos companheiros, mas isso em nenhum momento foi motivo para desanimar.

Se o acaso interfiriu nos planos iniciais restava seguir um plano B, que foi a decisão de continuar a viagem por um roteiro alternativo, percorrendo o litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Antes de colocarmos essa opção em prática, resolvemos conhecer a praia de Barra Velha que estava a menos de cem metros de onde havíamos acampado. Sim, continuava chovendo, mas a gente nunca sabe quando teremos a oportunidade de estar no mesmo local novamente.

Barra Velha/SC

O mar estava agitado e não havia quase ninguém na praia, avistamos apenas dois surfistas aproveitando as ondas propiciadas pela condição do tempo. Tiramos algumas fotos, conversamos mais um pouco sobre o novo roteiro e deixamos combinado que em Biguaçu faríamos um estudo mais detalhado para ver até onde o Marco poderia me acompanhar, pois eu estava decidido a ter Montevideo e posteriormente Buenos Aires como meu destino final.

Aproveitando pra conhecer a praia de Barra Velha/SC
Barra Velha e suas bonitas praias ficaram para trás e seguimos pela 101, já passava das 8:30 e tinha um bom trecho pela frente. Na estrada o cenário não mudaria em relação ao dia anterior, muita chuva, frio e o trânsito continuava intenso. O relevo também não modificou e as subidas e descidas moderadas ainda nos fazia companhia. Marco realizava algumas paradas durante o pedal para registrar um momento e o outro.

Não recordo o local exato de onde paramos pra almoçar, mas não eram muitas as opções, logo depois da entrada para Piçarras e Penha encontramos um posto de combustível na outra margem da rodovia com um restaurante paralelo, na verdade uma churrascaria que estava lotada e não parecia um local econômico. Considerando que estávamos encharcados, seria no mínimo estranho entrarmos com aquelas condições. O funcionário do posto nos informou que poucos quilômetros a frente havia um restaurante com um preço mais acessível ao nosso bolso. Passamos uma água na sujeira acumulada na bicicleta em razão da chuva e voltamos pra estrada.

O restaurante indicado não demorou a aparecer e realmente o valor do almoço estava no orçamento, dez reais. Contudo, havia o problema de estarmos molhados. O local estava cheio e o Marco foi pedir para prepararem dois marmitex pra gente. Minutos depois, estávamos sentados na frente de um estabelicimento fechado (Pousada Solar) ao lado do restaurante. A fome era tanta que não nos preocupamos com o frio, embora, a temperatura do corpo parado e com roupas molhadas estivesse diminuindo.

Almoço do lado de fora do restaurante.
Sem poder perder tempo, almoçamos rápido, descansamos um pouco e saimos. Sem antes, conversar com algumas pessoas que nos perguntavam de onde éramos e pra onde estávamos indo. A incredulidade misturada com admiração geralmente fica estampada no rosto de quem descobre o que estamos fazendo.

No asfalto não pedalamos 100 metros e o Marco avisa que seu pneu está furado. Nem aquecemos o corpo e já temos que parar novamente para realizar a troca da câmara de ar furada, novamente um pedaço pequeno de arame foi o responsável. Ao vistoriar o pneu para ver se nenhum resquício do objeto se encontrava no local tivemos uma surpresa. Vários pedaços estavam cravados no pneu Maxxi (traseiro e dianteiro) do Marco e só não causou nada antes por causa da fita anti-furo. Assim que foram retirados e a câmara trocada, finalmente voltamos a pedalar.

Pneu furado após o almoço, ninguém merece.
A região é um dos grandes destinos de turistas brasileiros, sobretudo, da região sul e também de argentinos e uruguaios. Estávamos em Balneário Camboriú que fica à margem esquerda da BR 101, do lado direito Camboriú. O local é muito procurado pelas suas belas praias e a badalação noturna. Infelizmente o tempo era curto e com chuva resolvemos seguir. Após a saída da cidade pegamos uma subida mais forte, o famoso Morro do Boi. Passamos sem maiores dificuldades e o que nos chama atenção é uma queda de barreira de grandes proporções e a engenharia feita para a contenção do local. Neste momento a chuva cessa por alguns minutos.

Subindo o Morro do Boi
Queda de barreira no Morro do Boi
Adiante não deixamos de observar uma curiosa propaganda. Se tratava de várias calotas de carros no alto de uma árvore, metros depois uma loja/oficina de tais peças indicava o significado da obra de arte. O local fica antes da entrada de Itapema, outra cidade do litoral de Santa Catarina.

Coisa de caloteiro

Bombinhas, destino do antigo roteiro também estava ficando para trás. Segundo o Aramis, com o tempo que estava, uma visita em Bombinhas não teria muito proveito. Marco e eu continuamos em direção à Biguaçu. Antes de escurecer fazemos nossa última parada em um posto de combustível, Marco compra algumas coisas e abasteço minhas garrafinhas de água. Ao lado do posto outra curiosidade do caminho, a Lanchonete e Churrascaria do Avião, o nome é muito sugestivo, simplesmente existe um avião que faz um tipo de fusão com o estabelecimento. Claro que valeu uma foto.

Criatividade. Lanchonete e Churrascaria do Avião

Fiquei sabendo depois que o avião era clássico em Florianópolis onde também tinha a mesma finalidade e se chamava Aeroflop. Com defeito e virando sucata no aeroporto, o dono do restaurante teve a ótima idéia que depois foi transferida para a entrada de Porto Belo, onde encontramos ele.

Não podemos reclamar do acostamento da 101 até o momento. Talvez você tenha problema com furos no pneu por causa dos arames soltos dos caminhões como já mencionado nos casos anteriores. Isso depende da marca e modelo que você está usando na bike. Meu Pirelli BM-90 1.9 é um excelente pneu, sobretudo, no que diz respeito ao custo x benefício. Média de um pneu furado por viagem. Esses arames que ficaram cravados no pneu Maxxi do Marco não foram encontrados no Pirelli, acredito que seja pelo seu material e os cravos mais altos.

No mais, o acostamento encontra-se em boas condições. De noite, continuamos pedalando debaixo de chuva, os faróis dos veículos iluminando toda a pista, inclusive o acostamento. Considero isso um fator positivo uma vez que diminui a tensão de cair em algum buraco que passa despercebido mesmo com a utilização dos faróis da bicicleta.

Com muita determinação o pedal continuava, chuva, chuva e mais chuva. Brincava com o Marco que chegaríamos no Chuí mas não chegava Biguaçu. Apareceu uma placa de boas vindas que me animou um pouco, contudo, foram mais uns dez, quinze quilômetros até chegar na cidade. Em acordo, resolvemos ficar em pousada. A primeira que apareceu foi a escolhida. Seu Kiko nos atendeu e nos mostrou o quarto. O valor dividido por dois não era nada barato, mas depois de dois dias pedalando com muita chuva, resolvemos passar a noite ali mesmo. Tinha dois quartos e três camas, imenso o lugar. Reservamos um quarto para montar um varal e estender a roupa na intenção que a mesma viesse a secar um pouco. Ligamos os dois ventiladores e o ar condicionado. Mas no dia seguinte percebemos que não adiantou muita coisa.

Quarto reservado na tentativa de secar as roupas
Falando em roupas, levei duas blusas de moletom, uma mais bonitinha para usar em lugares um pouco mais exigentes e outra pra dormir. A primeira eu deixei no alforje sem sacola e mesmo com a capa ela ficou toda molhada e inutilizada o resto da viagem. A segunda estava comigo desde a saída de Curitiba pelo frio extremo que fazia, logo, acabou molhada também pois a jaqueta que estava por cima não era totalmente impermeável.

Na pousada do Kiko ainda aproveitei pra tomar um belo banho que ficou faltando na noite anterior. Sim, isso é algo que considero normal em uma viagem de bicicleta, principalmente no inverno, claro, por falta de opção. Ainda fizemos uma janta a base de sopa e pão francês, tudo para economizar. Compensamos com o completo café da manhã no dia seguinte, incluso na diária.

Mas faltava algo de extrema importância, traçar um roteiro alternativo. Verificar a distância até o Uruguay e fazer uma previsão de quantos dias seriam necessários para chegar na fronteira. O tempo era essencial para o Marco que tinha apenas dez dias de folga. Pelas nossas contas com base no meu Guia 4 rodas, levaríamos 6 dias de Biguaçu até o Chuí, 927 km, isso se o pedal rendesse média de 154 km por dia.

O planejamento era o seguinte, continuar na BR 101 em Santa Catarina até a divisa com o Rio Grande do Sul em Torres. Em território gaúcho seguir pela 101 chegando na cidade de São José do Norte, atravessar de balsa para Rio Grande/RS e logo depois a BR 471, também conhecida como Rota Extremo Sul por ser caminho para o Chuí e fronteira com o Uruguay.

Do Chuí no Brasil até Montevideo, comuniquei o Marco que seria possível fazer em 3 dias, mas isso iria estourar seu tempo disponível. Então deixou em aberto sobre o que iria fazer e traçou um objetivo, chegar ao menos no Chuy, lado uruguaio.

Em todo caso, vamos seguindo.

Santa Catarina: Entre praias e campos

Expedição de Inverno - Parte 4
No dia anterior nas proximidades de Balneário Camboriú Marco faz uma observação sobre seu freio a disco traseiro ou a ausência do mesmo. Verificando melhor notou que não tinha mais pastilha, um fato extremamente curioso, pois era nova e não resistiu dois dias de pedal, mesmo com muita chuva não era algo normal. Com uma cautela maior decidiu seguir apenas com o freio dianteiro e trocar em São José, a cidade mais próxima com possibilidades de ter uma bicicletaria com serviço especializado.

Na saída de Biguaçu, tempo ruim e chuviscos com a impressão de que a situação não iria melhorar. Avançando chegamos na entrada de Florianópolis, a Ilha da Magia, uma cidade com praias maravilhosas que eu tive o prazer em conhecer no verão de 2006. Registramos a passagem e começamos a perguntar em São José sobre a existência de uma bicicletaria próxima. Na saída da cidade resolvemos conferir a indicada por algumas pessoas. A loja ficava cerca de 3 km da rodovia e infelizmente não trabalhava com freio a disco.


São José/SC, entrada para Florianópolis.
Retornamos à BR 101 e resolvemos parar apenas em Palhoça, cidade onde o motociclista Carlos Fernado que também pedala e está preparando uma viagem para a Europa disse que havia uma boa loja para trocar as pastilhas. Chegando em Palhoça, após algumas perguntas, idas e vindas, somos direcionados ao centro da cidade, finalmente encontramos a Cicle Guckert.

Ao comunicar o problema, uma resposta não muito boa, a pastilha disponível era para freio mecânico, o do Marco era hidráulico. Mas o mecânico, muito atencioso, disse que poderia dar um jeito e solução é o que precisávamos para seguir. Marco autoriza a troca e ao começar o serviço, Leonardo (mecânico) nota o que causou o desgaste da peça, ela era específica para freio mecânico e com a utilização excessiva e muita chuva, não resistiu. Leonardo ressalva que vai fazer o mesmo procedimento. Melhor assim do que ficar sem freio.

O que sobrou das pastilhas do freio a disco.
Realizada a troca, observa-se uma folga na catraca da bike do Marco, logo ajustada pelo mecânico que aproveita e faz a mudança das sapatas do meu freio v-brake, desgastadas em razão das chuvas. Conversamos um pouco sobre viagens, competições e ciclismo em Santa Catarina. Agradecemos muito e nos despedimos. Resolvemos almoçar em Palhoça.

Em função da busca de uma bicicletaria especializada acabamos pedalando muito pouco na primeira metade do dia, precisávamos pedalar em um ritmo mais forte no período da tarde e também de noite. Seguimos e na região da Enseada do Brito avistamos a Baía Sul de Florianópolis, local muito bonito mesmo com o tempo fechado. Começa aqui as obras de duplicação na BR 101, situação que encontramos até Torres/RS quando saimos da rodovia e pegamos a Estrada do Mar.

Com as obras na 101 existem vários desvios pelo caminho, muita atenção pois em alguns trechos acaba o acostamento e a pista se torna mais estreita. No entanto, isso acontece mais onde tem desvio, logo volta o acostamento sem maiores problemas. Nos locais onde a rodovia já está duplicada o asfalto todo está uma maravilha, tudo perfeito.

Começo das obras de duplicação na BR 101. Vários desvios pelo caminho.
Em uma subida após a Enseada do Brito, um acidente, o caminhão tombado indicava que na estrada estamos sujeitos a tudo e atenção nunca é demais. Paramos, registramos o sinistro e seguimos. Se tudo que sobe, desce, nós descemos e bastante até chegar em uma ponte estreita e movimentada com um espaço minúsculo para o tráfego de bicicleta. A ponte fica sob um rio que por sua vez proporciona uma bela imagem com o Parque Estadual da Serra do Tabuleiro ao fundo. Assim, Marco não perdeu a oportunidade e fez uma parada para clicar a natureza do local e pra isso não se importou com o trânsito perigoso ao nosso lado. Apenas pra completar, uma nova ponte está sendo construida dentro dos planejamentos de duplicação.

Marco tirando o caminhão da terceira pista.

Parque Estadual da Serra do Tabuleiro

Mais alguns quilômetros e passamos pela entrada da praia da Pinheira onde morou o camarada Guilherme que me acompanhou na Expedição Foz, Estrada Real e Belo Horizonte. O que era chuvisco se transformava em chuva e assim foi durante o nosso pedal noite a dentro. O destino do dia a partir do plano feito em Biguaçu era Esplanada, depois da cidade de Tubarão, mas como estávamos atrasados por causa do episódio da manhã, resolvemos seguir até onde aguentássemos. Fizemos uma parada estratégica em um posto Shell para comer umas bolachas, salgados, ir ao banheiro e então continuar. O vento estava forte mas por sorte, a favor, uma raridade pra quem pedala pois parece que sempre temos o azar de pegá-lo contra. Não reclamamos e pegamos carona no vento.

Sem querer ser repetitivo, mas a chuva não nos deixava e persistia a cair. Outra parada, dessa vez pra registrar uma placa curiosa que indicava um lugar com o nome de Caputera, achamos engraçado e não perdemos a oportunidade de tirar uma foto. Na internet fui procurar sobre o local, o mesmo se trata de um bairro de Laguna/SC, cujo "nome foi dado na revolta de 30, os soldados viviam caminhando do centro de Imaruí atravessavam a prainha de canoa quando aqui chegavam diziam Graças a Deus que caímos por terra daí o primeiro nome Caiporterra hoje nossa amada Caputera."

Quantos caminhos na estrada da vida.

Adiante passamos ao lado de um extenso lago, visível mesmo a noite. Era a Lagoa Mirim sinal que Laguna estava próxima, após mais uma ponte estreita e muito mais movimentada do que a citada anteriormente, chegamos a uma entrada para a cidade. Continuamos pela 101 e paramos pouco depois em uma pousada que não nos saiu barato. Aqui vale uma observação; em viagens anteriores fiquei pouquíssimas vezes em pousadas/hotéis, todavia, essa expedição era diferente, acontecia durante o inverno e sob muita chuva o que dificulta a montagem de acampamento, sobretudo, nos postos de combustíveis.

Na pousada em Laguna conseguimos um pequeno desconto e ainda o café da manha incluso, este estava muito bom, diga-se de passagem, contudo, o dia começava melhor por um outro motivo. Era o quarto dia e somente agora o sol aparecia, sua presença foi muito comemorada, era possível tirar a capa do alforje e colocar algumas coisas pra secar sobre ele. Enfim, ver o sol brilhando nos animou bastante, eu particularmente fiquei muito feliz e pela primeira vez na viagem utilizei minha máquina fotográfica. Aproveitei e tirei umas fotos da pousada e fiz uma breve lavagem na bicicleta. O dia seria longo com tantas outras paisagens pelo caminho.

Pousada em Laguna/SC. 4º dia de viagem, finalmente sol.

Marco. Aproveitando o tempo bom para limpar as bicicletas.

A pretensão diária era chegar no Rio Grande do Sul, mais precisamente em Terra de Areia, mas como atrasamos no dia anterior, chegar na divisa de SC/RS seria de bom tamanho. Como era bom voltar a pedalar com sol e tempo bom. Tiramos muitas fotos da região, sua paisagem bucólica mesclada com as muitas indústrias de cerâmica nas proximidades de Tubarão. Nesta área também visualizamos o cultivo do arroz em algumas propriedades, fato pouco presenciado no Paraná e pra falar a verdade não me recordo de ter visto esse tipo de plantação em outro estado por onde tenha pedalado.


Paisagens bucólicas


Com o tempo bom (sem chuva) é possível pedalar com menos roupas.


Cultivo de arroz

Pedalando com sol pela primeira vez na viagem.

Segundo a Embrapa, o Brasil é o maior país no cultivo do arroz fora do continente Asiático, produção realizada a partir de dois sistemas, irrigado e sequeiro, sendo o primeiro responsável por 65% da produção nacional, destacando-se na região sul nas chamadas várzeas subtropicais. A orizicultura em Santa Catarina na última década, foi distribuida principalmente no sul e litoral sul do estado, somando 55% da produção.

Máquina específica para orizicultura


De outro ângulo.

Almoçamos em algum restaurante antes de Maracajá, cidade onde passamos por volta das 5 horas da tarde com a temperatura de 15ºC, informada pelo termômetro na entrada da cidade. Claro que a tendência era ficar mais frio. Em Araranguá tivemos a felicidade de testemunhar um magnífico pôr-do-sol. Parei no posto de combustível pra completar minha água enquanto o Marco foi numa farmácia procurar uma joelheira a fim de prevenir qualquer lesão em seu joelho, infelizmente não encontrou.

Pôr-do-sol em Araranguá/SC

Seguimos e não demorou para que a temperatura despencasse de noite, mesmo assim ainda fizemos uma pausa para comer umas bolachas e descansar alguns minutos, isso foi após a passagem por Sombrio, nome alusivo às sombras das figueiras do município. Como estava escuro e frio, não precisamos das acolhedoras árvores. Avante.

Parada estrátegica; bolacha.

Santa Catarina, este lindo estado pedalado em quatro dias entre chuva, sol, frio, praias e campos
ficava para trás com uma sensação de que voltar um dia é inevitável.

Rio Grande do Sul

Expedição de Inverno - Parte 5
Finalmente chegamos ao Rio Grande do Sul. Já era muito tarde da noite, precisamente 23 horas quando encontramos a primeira placa indicando que estávamos em outro estado. Infelizmente não existe uma placa de divisa, na ausência da mesma registramos uma da Polícia Rodoviária Federal avisando sobre a 9ª Superintendência e a 3ª delegacia pertencente a Torres/RS.

Chegada no Rio Grande do Sul

Mesmo cansado e com frio, pedalar por mais um estado me deixava extremamente contente. Já conhecia o RS desde 2005, na ocasião uma excursão com a faculdade pelas Missões Jesuíticas. Mas de bike era a primeira vez e isso tornava o momento ainda mais especial, uma sensação que aos poucos vou conhecendo o Brasil pedalando, falta muita coisa pra ver com os próprios olhos, certamente não passarei em todos os lugares, mas a impressão que tenho é de estar no caminho em que eu acredito, vivendo como gostaria de viver. Apenas em 2010 foram 6 estados percorridos de bike. RS, SC, PR, SP, RJ e MG. Aproveitando as oportunidades e adquirindo conhecimento, curtindo a natureza e valorizando a vida.

Pedalamos mais um trecho após a placa e o Marco parou para realizar um telefonema. Alguns postos de combustíveis pelo caminho, ficava prestando atenção se algum era propício para montar acampamento. Os bairros ao redor e afastados do centro não pareciam muito seguros o que exigiu que buscássemos outro lugar. Avançando, chegamos no trevo para o centro de Torres, entramos e seguimos até encontrar algum local onde fosse possível passar a noite.

Ao aparecer algumas residências, surge também um posto fechado com um lava-jato coberto, sem um guarda presente, peço permissão a um senhor que estava conversando no portão de uma casa aos fundos do estabelecimento. De forma grosseira nos avisou que não era dono do posto e que a ronda (polícia) poderia aparecer a qualquer momento e criar problemas. Sacando logo de cara que ele não estava a fim que ficássemos por perto, agradeci e perguntei sobre a existência de um camping. Pra nossa surpresa tinha um a menos de 50 metros.

Seguimos para o camping. Aparantemente abandonado, claro, temos que considerar o horário, já era quase meia noite. Mesmo assim na entrada do local não havia funcionário algum, adentramos e fizemos uma vistoria no local, identificamos banheiros e outras coisas típicas de camping. Observando melhor, achamos uma barraca montada, mas nada de funcionário. Marco bate palmas e ninguém aparece. Faço a sugestão de encostarmos em um canto coberto ao lado de uma pia e assim não precisar montar a barraca, usar apenas o saco de dormir. Marco aceita mas fica preocupado na possível chegada de alguém. Mas o máximo que poderia acontecer era um questionamento sobre a nossa presença que facilmente seria explicada com a justificativa de que não encontramos ninguém. Simples.

Já estávamos quase dormindo quando aparece uma mulher perto do banheiro, talvez tenha nos visto, não sei, todavia, não nos procurou. Logo em seguida surge um veículo e o rapaz entra no mesmo lugar do que a mulher. Apagam-se as últimas luzes que iluminavam o local. Tentamos dormir. Marco capotou em seu saco de domir. Assim como em todas as noites passadas acampando (incluindo viagens anteriores), tenho o sono muito leve e acordo com qualquer barulho. Não demorou muito pra que fosse despertado, duas horas da madrugada e avisto alguém em pé na calçada, próximo da entrada do camping. Acho tudo muito estranho, seria um funcionário? Alguém de olho nas bicicletas? Porque estaria nos vigiando? Fico esperto ao extremo, nada acontece e tenho apenas um cochilo e outro durante a madrugada fria do RS.

O despertador toca, não era nem 6 horas, mas foi o horário combinado com o Marco. Tínhamos que sair cedo pra que ninguém percebesse nossa presença. Seria sacanagem alguém querer cobrar nossa estadia relâmpago e com exceção do espaço, não tiramos proveito de mais nada disponível. Enfim, passava pouco mais das 6 horas e tudo estava devidamente pronto para nossa saída. Não aparece ninguém. Ao lado da entrada do camping tinha uma loja com cobertura e um catador de material reciclado com seu carrinho que havia passado a noite ali, era ele a pessoa que vi de madrugada. Cumprimentamos e partimos em direção à praia.

Torres talvez seja a cidade com as praias mais conhecidas do RS, era um lugar imperdível de conhecer e o tempo era bom, presenciamos um fantástico nascer do sol e nos direcionamos ao mar, cerca de uns 3 ou 4 km do camping. Chegamos ao centro, Marco finalmente achou a joelheira na farmácia e eu aproveitei pra passar no banco e verificar se um dinheiro havia sido creditado na minha conta. Felizmente sim e poderia seguir a viagem tranquilo.

Nascer do sol em Torres
Fomos finalmente ver o mar. Chegamos na Prainha ou Praia do Meio, de onde avista-se o majestoso Morro do Farol. Realmente um maravilhoso lugar que muito me agradou. As cores intensas eram destaques na grama que buscava espaço na areia da praia e do céu azul com algumas nuvens, o verde era mais verde sob as rochas que eram beijadas pelas espumas do mar, este, por sua vez, imenso e calmo com pequenas ondas na presença de pássaros, crustáceos e humanos que completavam e refletiam diante o cenário de uma das mais bonitas praias que visitamos durante toda a viagem.


Torres/RS


Pássaros

Humano em reflexão


Marisco


Crustáceos

Entre uma foto e outra, telefonei para meu pai parabenizando-o pelo seu aniversário e mandando notícias de onde estava. Logo depois seguimos para a praia da Cal, no caminho passamos na base do Morro do Farol onde existe uma gruta de Nossa Senhora Aparecida. Ficamos um bom tempo apreciando a natureza e retornamos ao lado da Lagoa do Violão, casas luxuosas ocupam a área residencial entre a praia e a lagoa.

Na base do Morro do Farol

Marco nota o pneu ficando vazio, sem perder tempo resolve parar numa bicicletaria e colocar uma câmara de ar nova. Mais alguns arames dos pneus de caminhões são retirados. Na oficina o pessoal nos aconselha seguir pela RS 389, conhecida como Estrada do Mar, ao invés de ir pela BR 101 que além de estar em obras tem mais subidas. Como estávamos viajando com um roteiro aberto, decidimos seguir margeando o Oceano Atlântico.

A Estrada do Mar foi construída justamente com a "intenção de desafogar o trânsito da BR 101 entre Osório e Torres. Nesta rodovia só é permitido trafegar carros de passeio, com a clara intenção de incentivar o turismo e diminuir acidentes. Ônibus e caminhões transitam pela BR-101." A informação do Wikipédia é legítima, verificamos pouco fluxo de veículos, acostamento em perfeitas condições confunde-se com a pista, pois sua demarcação é feita com uma faixa quase apagada, mas a largura da rodovia evita qualquer situação mais perigosa. O relevo é praticamente plano em sua totalidade. Apesar do nome da rodovia, não se avista o mar, contudo, as cidades litorâneas estão próximas, cerca de dez quilômetros da pista principal.

Claro que seria muito agradável conferir cada praia de perto mas nosso tempo era curto e tínhamos um objetivo, chegar no Uruguay. Em uma viagem de bicicleta, mesmo com uma disponibilidade maior para conhecer os lugares, alguma coisa sempre fica para uma próxima vez. Faz parte, como tudo na vida, para ter determinadas coisas é necessário renunciar a outras. Seguimos.

Uma fauna e flora riquíssimas começa a fazer parte do caminho de modo impressionante, sobretudo, uma diversidade imensa de pássaros, como nunca vista antes em uma viagem de bicicleta realizada por mim. Acredito que a presença de vários animais se justifica pelo ambiente rodeado de lagoas, campos arborizados e a proximidade com o litoral.

Papa-arroz (Leistes superciliaris)

Essa é a natureza, sempre surpreendendo.

No caminho fomos abordados por dois ciclistas em suas speed, eram de Caxias do Sul, tratava-se de Daerton Labatut e Erico. O primeiro competidor há mais de quarenta anos. Hoje participa da categoria master do Campeonato Brasileiro de Ciclismo, fato que me fez questionar se conhecia o Paul Lirio Berwin de Marechal Cândido Rondon/PR, um amigo de pedaladas nas trilhas de Rondon. Labatut não só conhecia o Lirio como também outros ciclistas de Foz do Iguaçu, como o Toninho e seu pai, sr. Azor. Pra completar a idéia de que o mundo (pelo menos o do ciclismo nacional) é pequeno, ambos já pedalaram com um outro amigo cicloturista, o Jair (peixe), participante de vários Audax.

Conversamos por alguns quilômetros, registramos o encontro, nos despedimos e eles seguiram pela Rota do Sol até Caxias, estavam aproveitando uma visita à Torres para treinar, em sua companhia estava um carro de apoio. Vale uma observação em relação as bicicletas importadas deles, (Fuji e Pinarello) cada uma custando bem mais de 10 mil reais, é brincadeira? Cada um investe como pode. O simpático Labatut ainda fez um pedido, assim que estívessemos
na Av. Itália em Montevideo, tirássemos uma foto do globo que seria de fácil identificação. Segundo ele, estivera neste local anos atrás.

Eu, Marco, Labatut e Erico.

Marco e eu, continuamos pedalando pelo Litoral Norte Gaúcho. Na região de Xangri-Lá, verificamos o contraste social, existente também em várias localidades do Brasil, infelizmente. Um fato curioso foi perceber que a rodovia separava dois extremos, o lado rico e suas luxosas mansões e o lado pobre com seus barracos sem a mínima infra-estrutura de uma habitação. Além disso, como bem observou o Marco, até a natureza dos lugares parecia diferente, incrível. Em determinadas áreas não precisava da pista para demonstrar tal contraste.

Contrastes pelo caminho.

Almoçamos nas proximidades da Atlântida Sul, um local para burguês comer, o que não era nosso caso. Mas com fome, não resistimos e pedimos o prato mais barato do menu (não era buffet). Lógico que veio pouca comida, frescura de gente rica. Só paramos no local porque já passava das 3 horas da tarde e parecia que não acharíamos outro estabelecimento aberto na região. E detalhe, não jantamos no dia anterior e o café da manhã foi apenas dois salgados na saída de Torres.

Marco. Detalhe na porção 'imensa' do arroz.

Não demoramos muito e caimos na estrada sentido Capivari do Sul, a preferência pra chegar na cidade foi via Osório e não Tramandaí e Cidreira, o motivo muito simples, a distância menor. Lembrando que decidimos por tal caminho na hora, logo depois do almoço. O Marco havia feito no começo do ano a viagem de Itanhaém/SP ao Chuy no Uruguay, salvo alguns trechos, o caminho era 80% o mesmo. Contudo, Osório era novidade pra ele, uma vez, que na outra ocasião seguiu por Cidreira.

A decisão por passar em Osório não poderia ter sido melhor, pra começar encontramos pelo caminho uma árvore de pássaros, algo de uma peculariadade inacreditável. Sem as folhas por causa da estação, a presença das aves amarelas, parecidas com Canário da terra transformou a paisagem em um momento inesquecível.


Árvore de pássaros.

As surpresas não acabaram e logo começamos a enxergar grandes 'moinhos de vento' no horizonte. Na verdade era o Parque Eólico de Osório, a maior usina eólica da América Latina, composta por 75 torres de aerogeradores de 98 metros de altura e 810 toneladas de peso cada uma. Com certeza mudando a paisagem da área campestre. Foi a primeira vez que tive a grande oportunidade de conhecer uma usina deste tipo. No Paraná sei que tem em Palmas, contudo, ainda não visitei a cidade. Por isso, estar diante de tamanha engenharia foi mais uma experiência memorável. Pra completar, o pôr-do-sol entre as enormes torres.

Parque Eólico de Osório

Maior usina eólica da América Latina

Torres e aerogeradores enormes para transformar a energia eólica em elétrica.

O vento começou a ficar forte e o tempo fechado, sinal que mais cedo ou tarde a chuva voltaria. Após o Parque Eólico, pegamos um trecho pequeno na BR 290 antes de ingressar na BR 101/RS101. Assim que você avistar muita água ao seu lado direito é sinal que você está diante da Lagoa dos Barros, se você é supersticioso, atente para as lendas do local, sinistro.

Essa parte da 101 se apresentou como uma das mais belas de toda a Expedição de Inverno. Foram inúmeras espécies de pássaros encontradas durante os quilômetros até a cidade de São José do Norte. Uma fauna extremamente rica. Mas isso, nós presenciamos apenas no dia seguinte, pois depois de Osório a noite chegou e ouvimos apenas o som dos animais por todos os lados. O acostamento é quase inexistente, muito estreito, contudo, percebe-se que na medida que você avança diminui o tráfego de veículos e fica muito fácil pedalar por essas bandas.

A pretensão depois de Osório era chegar em Capivari do Sul e assim ficar devendo 'apenas' 80 km considerando o roteiro alternativo traçado em Biguaçu/SC. Seguimos e a chuva apareceu antes do que imaginávamos. Coube decidir, seguir na chuva ou parar na próxima cidade. A resposta foi rápida, parar no próximo lugar habitado, que por sua vez era Passinhos, um pequeno distrito de Osório. Entramos e logo perguntamos sobre a existência de alguma pousada ou hotel, embora, não estivesse esperançoso de que a resposta fosse positiva. Um jovem nos aconselhou o ginásio que seria aberto em poucos minutos para uma partida de futsal, teríamos que conversar com o responsável do local.

A fome já estava sinalizando que era hora de comer, então resolvemos procurar um mercado para completar nosso estoque de bolacha e macarrão instantâneo. Encontramos um mercado modesto e que tinha cobertura em sua entrada. Marco perguntou ao dono se haveria problema em passarmos a noite no local. Somos autorizados sem antes a mulher dele nos contar um causo de que certa vez um ladrão ou rebelde como foi mencionado, tentou invadir a casa deles nos fundos, sem saber do alarme acabou surpreendido e fugiu, minutos depois praticamente todo o povoado estava com armas, facões e coisas do gênero na frente do mercado para pegar o ladrão forasteiro. Se a história é verídica eu não sei, mas pareceu que ela estava tentando nos dar um aviso caso nossa intenção não fosse das melhores.

Enquanto nos preparávamos pra tirar as coisas da bicicleta aparece um homem e começa a conversar, era o Sr. Darci, pai da mulher que nos contara o causo. Ao saber que pretendíamos passar a noite ali nos ofereceu gentilmente a garagem de sua casa, totalmente coberta e protegida, sobretudo, da chuva e frio. Sua esposa, dona Lourdes a princípio hesitou um pouco mas logo embarcou na idéia de nos ceder o espaço. Maravilha.

A garagem era simples, além de guardar o carro, Sr. Darci utilizava como um deposito para seus equipamentos de montagem a cavalo, entre outras coisas. Ficamos muito satisfeitos com a sorte e a hospitalidade daquelas pessoas. Já chovia forte quando a comida estava sendo preparada. Claro que ficamos sem tomar banho, o Marco ainda se dispôs a passar uma água rápida com a mangueira que estava do lado de fora. Cansado, com fome e fazendo aquele frio, não pensei duas vezes em deixar o banho pro dia seguinte.

Garagem, nosso quarto.

Marco depois de um banho gelado de caquinha no quintal.

Capotado.
Choveu bastante a noite inteira. Na manhã seguinte, acordamos cedo e logo arrumamos as coisas e ficamos prontos pra partir. Antes, agradecemos a hospitalidade do simpático casal e tiramos uma foto com eles. Dona Lourdes ainda comenta sobre o tempo e nos surpreende com a notícia que um tornado atingira Canela, na serra gaúcha, o local fazia parte do nosso antigo roteiro. Fiquei atônito ao saber da tragédia e pensei sobre isso o resto do dia. Ainda bem que mudamos o itinerário.

O casal que nos cedeu espaço para passarmos a noite.

Sem chuva partimos com aproximadamente 100 km (ou meio dia) de atraso ao nosso roteiro alternativo, objetivo do dia era seguir o máximo possível para diminuir esse prejuízo. Mas a missão foi difícil, isso porque era inevitável não parar, contemplar e registrar a natureza que se apresentava cada vez mais bela e rica em sua diversidade. Também presenciamos nos primeiros quilômetros alguns animais mortos na estrada, como tatu, codorna e uma pequena cobra, indícios da invasão humana sem consciência ao espaço natural da fauna regional.

Tatu atropelado.

Esse era um dia especial, 22 de julho, aniversário do camarada Marco, acredito que tenha sido um grande presente passar essa data pedalando. Recebeu vários telefonemas, principalmente na parte da manhã, significando uma parada aqui, outra acolá enquanto apreciava as belezas naturais, paisagens maravilhosas. Mesmo atrasados, ambos não tinham pressa e não mostravam-se preocupados com tal situação, afinal, o importante era avançar e isso estava sendo feito.

Marco recebendo os parabéns pelo seu aniversário.

A natureza nos presenteava a cada quilômetro com uma espécie diferente de pássaro, desde Cardeais, Canários, Gaviões, Papa-arroz (Leistes superciliaris), Pica Pau de Papo Amerlo, até aves não identificadas mas com uma beleza ímpar. Uma diversidade assim eu não cheguei a ver nem mesmo na Estrada Real em Minas Gerais, onde pedalei cerca de 700 km pela área rural do estado, também muito rica em sua fauna e flora..
Buteogallus meridionalis. Gavião-caboclo.

Carão

Cardeal

Papa-arroz
Não identificado

Resumindo a diversidade e beleza do ambiente.

A estrada como já foi dito não apresentava nenhum problema, pelo menos até Capivari do Sul. Depois buracos e mais buracos fazendo todos, inclusive a gente, desviarem em alguns trechos das crateras no asfalto, isso exigiu mais atenção pra evitar ser pêgo de surpresa por algum motorista distraído. Assim foi até Mostardas onde decidimos parar pra descansar, pousada foi a solução. Mas antes vale contar dois fatos no mínimo curiosos. O primeiro referente a uma placa não muito comum na estrada; SOLIDÂO, referente ao distrito de Mostardas, claro que não deixamos de brincar com a situação e fazer algumas performances diante de tal ocorrência. Mereceu a lembrança da célebre frase do Renato Russo; "O mal do século é a solidão." Como será que vivem as pessoas deste lugar? Melhor não incomodá-las!

"O mal do século é a Solidão"

Segundo fato, pra chegar em Mostardas não foi fácil. Não porque estava frio, aliás muito frio, é bom deixar registrado. Não estava chovendo, mas tinha um clima nebuloso no ar, notamos que um carro estava muito devagar na nossa frente, cerca de uns 700, talvez 900 metros. Isso durante vários minutos, avisei o Marco e ficamos espertos. Era uma região deserta, estava de noite e todo cuidado era pouco. Resolvemos apagar os faróis na intenção de despistar o motorista e passamos a pedalar mais devagar a fim de não ultrapassá-lo e deixar que sumice do nosso campo de visão. Foi um momento de certa tensão até o momento que não era mais possível vê-lo. Na verdade ficamos tranquilos mesmo só quando estávamos hospedados na pousada. Pois antes de Mostardas a atenção foi redobrada e cada canto era observado para evitar um ataque surpresa. A lua foi nossa aliada, ilimunando o asfalto, não necessitando do farol.

O que teria acontecido? A pista repleta de buracos teria causado algum dano ao veículo ou estava mesmo mal intencionado? Nunca saberemos a resposta, ainda bem. Assim salvaram-se todos. Em relação à condição da pista, de tarde um caminhão sem poder desviar completamente dos buracos, pois do outro lado da pista havia dois ciclista (a gente), acabou estourando um dos pneus que mais uma vez na viagem nos deu um baita susto.

Com o episódio do carro fica um alerta aos amigos cicloturistas, sempre fique atento a qualquer comportamente suspeito. É quase inevitável nas paradas dizer de onde vem e pra onde vai, mas hesite antes de uma resposta imediata e verifique se ao redor não há pessoas aparentemente má intencionadas, sei que julgar alguém pela aparência é injusto e complicado, mas nos dias de hoje é bom tomar cuidado, sobretudo, se você está pedalando sozinho.

Começamos o último dia na BR 101, talvez o mais tranquilo de toda a viagem. E sem brincadeira, era possível contar quantos carros passaram por nós durante as horas em que estivemos na estrada, mas eu pelo menos não fiquei concentrado neste detalhe e fui apreciando as paisagens. As margens da rodovia estavam quase todas alagadas em razão da chuvas, comuns nesta época do ano na região, conforme nos falaram os próprios moradores do local. Em algumas áreas habitadas a água quase invade as casas à beira da estrada. E não é absurdo dizer que vários hectares ficam inutilizados, pelo menos aos seus proprietários, pois a fauna e flora agradecem o ambiente, acredito eu, após verificar tanta vida pelo caminho.

Após Mostardas a estrada melhora muito em comparação ao trecho do dia anterior. O sol aparece mas não esquenta muito, talvez por causa do forte vento que por sua vez, estava contra. Não rendemos muito e o desgaste foi ainda maior. Marco estava sentindo dores nos tendões, segundo ele, a sapatilha nova utilizada por vários dias consecutivos (pela primeira vez) proporcionou o inchaço do calcanhar. Mas não foi isso que desanimou ou desencorajou e fez o camarada desistir, bravamente resistiu até o fim. Sou testemunha de seu esforço para vencer essa barreira. Sem poder fazer muita coisa, me restou um apoio moral e compreender que seu ritmo não seria o mesmo. E sinceramente, em nenhum momento pedalar em seu ritmo ou esperar sua aproximação foi motivo para ficar bravo ou coisa parecida.

O trecho até Tavares era tão tranquilo que resolvemos tirar umas fotos diferentes, deixando a câmera no meio da pista, mas não é qualquer pista, é a BR 101, fato que merece toda atenção por ser uma das rodovias mais conhecidas do país, principalmente por sua extensão interligando vários estados e dezenas de cidades. Foram algumas tentativas com a função automática da máquina até conseguir um clique legal.

De um ângulo diferente na BR 101.

Como a saída da Pousada Parque em Mostardas foi um pouco tardia, pois não é fácil acordar cedo no frio, especialmente depois de vários dias na estrada, pedalando. Mas a demora também foi justificada pelo café da manhã, servido a partir das 7 horas da manhã e que não poderíamos deixar de degustar.

Na estrada, logo estávamos no Parque Nacional Lagoa do Peixe, ambiente que é "é abrigo para grandes concentrações de aves migratórias", incluindo o Flamingo, não avistamos o mesmo, exceto em uma escultura na entrada da cidade de Tavares. Outras aves se incubiram de deixar o cenário bonito.

Pica pau do papo amarelo

Não identificado.
De Tavares até Bojuru não existe praticamente nada, um ou dois pequenos povoados (mas pequenos mesmo) sem nenhuma estrutura para alguém que está viajando, como restaurante por exemplo. Portanto, se você vai se aventurar por esta região, prepara-se para fazer sua própria comida ou comer alguma coisa pra enganar o estômago, assim como fizemos. Mas antes acabamos de tirar as fotos no meio da estrada que começamos quilômetros atrás. Não é imprudência da nossa parte se atrever desse modo, o local realmente é muito pouco frequentado, ao menos quando passamos por lá. A cada meia hora passava um carro e outro. Assim, conseguimos fotos ainda melhores.

BR 101, a infinita highway

No acostamento estreito paramos pra comer algumas bolachas acompanhado da sobra de um refrigerante comprado no dia anterior. Tudo muito simples. Com a calmaria, Marco ficou sentado na pista, sim, na BR 101 e brindamos ao nosso estilo de vida. E assim foi nosso almoço diante de uma rodovia quase deserta meio a extensos campos abertos com algumas partes alagadas e horizontes em que era possível observar as lagoas e lagunas da região.


Almoço no acostamento da BR 101. Um brinde ao nosso estilo de vida.

Áreas alagadas.

O tempo estava bom no que diz respeito a não estar chovendo. O sol brilhava forte em um céu sem nuvens, mas no inverno isso não implica necessariamente que a temperatura estivesse moderada, com vento o frio tornava-se intenso fazendo com que ficássemos pouco tempo parados. A tranquilidade e beleza do lugar não deixaram que o vento contra nos desanimasse.

Na pequena Bojuru fomos procurar um mercado para nossas provisões, sobretudo, de comida. Era final de tarde e regressando à estrada o espetáculo do pôr-do-sol era mais um fato diante de um dia inesquecível. Contudo, o crepúsculo não era sinônimo de que o pedal estava encerrado. Na verdade teríamos mais quatro horas na estrada.

Pôr-do-sol

E sem o Sol fica ainda mais frio.

 
De tarde, o céu sem nuvens já indicava que a tendência seria ficar cada vez mais frio a partir do momento em que o sol se escondesse. E o resultando não foi outro, na minha opinião a noite mais fria de toda a viagem, incluindo os dias posteriores no Uruguay onde o inverno se fez presente rigorosamente.

O silêncio predonominava no longo caminho para São José do Norte, inclusive, conversávamos pouco, o cansaço era aparente, ambos sentíamos a temperatura baixa e as reações não poderiam ser diferentes, cada um seguiu pedalando pra manter-se aquecido, o momento era de concentração no intuito de não deixar o cansaço nos abater. O ambiente não era dos mais agradáveis a essa altura, frio, lugares isolados e pouco habitados. Acredito que a temperatura estivesse entre 3 a 5 graus Celsius, contudo, a sensação térmica era muito menor, meus pés e mãos praticamente congelaram, fato que me fez lembrar um episódio parecido na viagem para o Chile quando a 4 mil metros de altitude na Cordilheira dos Andes, os dedos das minhas mãos pareciam que iriam se despedaçar a qualquer momento.

O camarada Marco sentia o frio praticamente do mesmo modo. Em determinado ponto parei para colocar minha touca estilo ninja, toda fechada com abertura apenas nos olhos e boca, tudo a fim de evitar a perda de temperatura. Marco continuava a sentir as dores nos tendões e como de costume parava para fazer breves alongamentos. Em um desses momentos avisei que parar com aquelas condições seria pior do que continuar sem alongar. Seguimos.

Frio intenso, foi necessário usar a touca ninja.

Mesmo com poucas conversas e um clima tenso no ar, as risadas aconteceram. Nas proximidades de Estreito, com as luzes das bicicletas apagadas para economizar pilha aproveitando a luminosidade refletida pela lua, tivemos uma situação engraçada. No pequeno vilarejo às margens da rodovia um grupo de garotas se preparava para atravessar a pista quando nos avistaram e consequentemente se assustaram com a nossa presença do além. Logo depois, todos nós caimos na risada, cumprimentamos e avançamos comentando o fato.

Naquela hora da noite (21:00) e com o frio que fazia, encontrar aquelas moças no meio da pista era algo realmente curioso, elas possivelmente deveriam ter saído de algum culto religioso e então ficamos imaginando a impressão delas ao nos ver. Será que fomos comparados em um primeiro instante à maleficências citadas nas sagradas escrituras? Não sei. Mas foi engraçado e nos rendeu boas risadas depois.

A essa altura, faltava uns 40 km para chegarmos em São José do Norte, sem cogitarmos a idéia de parar em outro lugar seguimos determinados a superar essa distância apesar de todas as adversidades. E assim, por volta das 11 horas da noite chegamos na cidade com suas ruas de pedras irregulares com ambiente portuário e uma imagem que não nos agradava, uma vez que estava escuro e na região do cais algumas pessoas estavam nas sombrias vias. Um carro aborda o Marco, era o Cesar, conhecido na cidade como Marreca, segundo ele estava andando nas ruas na tentativa de fazer sua filha (um bebê) dormir. Ainda nos direcionou até o local onde se encontrava a balsa por onde atravessaríamos para a cidade de Rio Grande. Questionado sobre o melhor local para passarmos a noite, S. J. do Norte ou Rio Grande, Cesar acaba nos mostrando um hotel próximo do cais.

Antes de nos despedirmos de Marreca, ouvimos suas histórias de que também havia praticado cicloturismo muito tempo atrás, realizando até uma viagem para o Rio de Janeiro. Talvez por isso de sua atenção e admiração. Agradecemos pelas dicas e fomos direto para o Hotel Caçulão, indicado por Marreca. Decidimos ficar em São José do Norte principalmente para poder atravessar a Lagoa dos Patos de manhã e assim curtir o visual.

No hotel simples, temos uma boa notícia, a diária do quarto mais barato é a menor encontrada até o momento, sem hesitar, aceitamos e pagamos 15 reais cada um, sem café da manhã, infelizmente. Também não tinha banheiro no quarto, mas pra ser sincero eu não me importei com isso, estava com tanto frio que minha vontade era preparar a comida e dormir aquecido o quanto antes, o banho poderia ficar pra depois. Marco acabou encarando o banheiro comunitário que pelo menos tinha água quente.

Descanso merecido.

Nosso vizinho de quarto era um tanto extravagante para não dizer outra coisa. Marcelo o recepcionista do hotel nos alertou sobre seus hábitos excêntricos, ele simplesmente conversava com a televisão. Entendo que muitos já tiveram esse tipo de atitude, mas e se eu dissesse que o diálogo durou a noite toda? Sim, fomos dormir com ele assistindo o programa Separação da rede Globo e cantando de um jeito muito engraçado a música; Pode vir quente que eu estou fervendo, e acordamos com ele discutindo com o aparelho. A sorte foi que eu particularmente estava cansado e não fui prejudicado com a sonoridade ao lado. Talvez tudo isso explicasse o valor baixo da diária.

Na manhã seguinte descemos as escadas que exigiram esforço no dia anterior para levar as bicicletas até o quarto. Aproveitamos e no restaurante do hotel tomamos o café da manhã, pão francês e leite. Depois nos dirigimos para a balsa que estava de saída, o que provocou uma correria em comprar o bilhete (4 reais) e para embarcar as bicicletas. Mas deu tudo certo e São José do Norte estava ficando para trás, assim como a BR 101 com suas magníficas paisagens.

A Rota Extremo Sul era nosso próximo destino.